AFOGAR HOMERO, CAMÕES E WHITMAN NUM BARRIL DE CRUDE

Posted on10/11/2019AuthorViriato Soromenho-Marques

A infeliz conclusão a que as diferentes disciplinas das comunidades científicas centradas no estudo do futuro do planeta vão chegando é a de que o preço que iremos pagar pelas alterações climáticas chegará mais cedo e com mais violência. O seu forte impacto negativo sobre o conjunto do Sistema-Terra será sentido ao longo dos próximos séculos, talvez até milénios. Por exemplo, num estudo recente publicado em Maio último todos os valores sobre o contributo do colapso das camadas de gelo sobre a Gronelândia e Antárctida para a subida do Nível Médio do Mar (NMM) foram fortemente aumentados, relativamente a estimativas anteriores. Em virtude da incerteza que ainda permanece nos modelos usados, as novas projecções podem ainda ser corrigidas para cima, mas, pelo menos, em 2100, o NMM será mais elevado 2 metros e em 2200 a variação será de 7,5 metros em relação ao NMM da época pré-industrial. Esta mudança do NMM é apenas uma metonímia de uma série de flagelos bíblicos associados: aumentos de secas, inundações, redução drástica da produção alimentar, migrações de centenas de milhões de pessoas de cidades alagadas e de zonas geográficas tornadas inabitáveis, expansão de doenças transmitidas pior vectores, multiplicação de Estados falhados com o renascimento de manifestações de poder tribal e feudal. Pela minha parte, acrescentaria que vejo com muita improbabilidade que esta avalanche de desgraças não catalise um mega-episódio de violência bélica com o uso de armas atómicas, capaz de provocar um fenómeno exponencial de mortalidade, sem qualquer espécie de paralelo nos anais da história humana.

Como chegámos até aqui? Como foi possível que este modelo de civilização europeia, hoje tornado mundial, e que durante 500 anos transportou a bandeira utópica do progresso infinito (que, ainda hoje, alguns descabelados fanáticos da tecnofilia acéfala e acrítica ostentam sem vergonha) tenha mergulhado o futuro colectivo na escolha sinistra entre a miséria crescente ou a extinção total? Um recente estudo – A América foi enganada – assinado por cinco autores e validado por 3 prestigiadas universidades ajuda a encontrar uma parte da resposta (1). Não foi por ausência de conhecimento científico, não foi por escassez de informação e aviso por parte de cientistas, activistas ambientais e até servidores públicos com elevada consciência ética que chegámos até aqui. A responsabilidade reside na maldade moral dos líderes de grandes empresas multinacionais de combustíveis fósseis, com a Exxon-Mobil à cabeça. Apesar de já terem informação muito rigorosa obtida pelo trabalho dos seus próprios departamentos científicos, muito mais avançados nos anos 70 do que qualquer universidade, os conselhos de administração dessas multinacionais actuaram criminosamente a vários níveis: a) procuraram que esses relatórios ficassem fora do olhar público (só recentemente foram descobertos) e desmantelaram ou reduziram os seus próprios departamentos científicos; b) contrataram e/ou criaram 40 agências de informação, think-tanks, “especialistas” (muito deles já com experiência nas campanhas de desinformação da indústria tabaqueira, contra as políticas públicas de protecção da saúde pública) e mercenários académicos para uma das maiores e mais longas campanhas de mentira organizada, tentando primeiro negar a realidade das alterações climáticas, e depois semear a dúvida e a incerteza na opinião pública de modo a atrasar a indignação dos cidadãos e a resposta das autoridades: c) promoveram e mantêm uma campanha de bloqueio da legislação ambiental e climática tanto na Câmara dos Representantes como do Senado, através de financiamentos e usos do seu poderio económico que tornaram o Congresso dos EUA num dos parlamentos mais venais do mundo inteiro, como o falecido filósofo John Rawls lamentava em 1999.

Hoje, a única barreira contra o veneno da corrupção na política norte-americana é a estrutura constitucional deixada pelos Founding Fathers. E é esse facto que explica que a Exxon-Mobil esteja, actualmente, debaixo de um duplo fogo. Em Nova Iorque, onde a empresa enfrenta em tribunal a acusação de ter engando os seus accionistas sobre os perigos do dióxido de carbono para o clima; e em Washington, no subcomité dos Direitos Civis e das Liberdades Cívicas da Câmara dos Representantes, onde prossegue uma audição com antigos cientistas da Exxon e com os autores do estudo que referimos mais acima. Mas até a preciosa e rica arquitectura institucional deixada por James Madison e Alexander Hamilton poderá desmoronar-se perante a brutalidade e a arrogância de uma plutocracia que prefere imolar o Planeta a perder alguns privilégios.

O estudo académico em causa só peca por estar muito centrado na realidade dos EUA. O mundo inteiro foi enganado por gente duma ganância que se transformou, como o futuro o irá demonstrar, no maior crime contra a humanidade. Não está em causa um povo, como no Holocausto perpetrado pelos nazis, mas sim a destruição das condições biofísicas de que depende o futuro da humanidade inteira e da nossa casa planetária, incluindo uma prodigiosa herança cultural eventualmente condenada a um rápido esquecimento. O genocídio que está em marcha, não foi decidido por homens fardados e altos funcionários políticos. Foi urdido por homens de negócios nos seus fatos elegantes, que professam a religião do “deus dólar”, como muito bem escreveu Eça de Queirós acerca da mais sinistra faceta dos EUA. Se tivéssemos começado a fazer a transição energética em 1980, poderíamos ter evitado os sofrimentos e a tragédia que agora são inevitáveis, com uma relação custo-benefício extremamente favorável e suave. Devido à ganância materialista e mesquinha de gente menor, cobardemente escondida na sombra dos seus privilégios, caminhamos para o futuro com a sinistra impressão de que os dados estão lançados. Contudo, os sinais de rebelião ambiental que se erguem um pouco por todo o mundo, envolvendo mulheres e homens de todas as gerações e lugares do mundo, revelam que talvez seja tarde para evitar o pior, mas ainda vamos muito a tempo para servir a justiça.