25 de Abril – A CADA UM SUAS EMOÇÕES

Quando amanhã se comemorar o 45º Aniversário do 25 de Abril de 1974 muitas e diferentes emoções serão sentidas pelos portugueses, não apenas os que são contra ou os que são a favor, mas cada pessoa. No meu caso, além do fervor da liberdade e do entusiasmo com o futuro, que senti quando fui informado do acontecimento libertador, no navio “Infante D. Henrique” em viagem para Angola, associo-lhe também o aniversário do meu pai, que se ainda entre nós se encontrasse completaria 94 anos, mas infelizmente já nos deixou há 18 anos.

Sobre os do contra não vou falar, eles que falem por si, que o podem fazer devido, precisamente, ao 25 de Abril.

Os que são a favor do acontecimento (muitos chamam-lhe revolução de Abril) estão no meu barco, pelo que as suas emoções, os seus votos comemorativos, serão próximos dos meus e a todos saúdo irmanando-os numa saudação ao movimento das forças armadas que pôs fim a 42 anos de ditadura.

Mas este ano, mais do que salientar o que fizeram esses militares, gostaria de relembrar alguém que a maioria de nós deixou no esquecimento ou nem sequer chegou a conhecer: Fernando Luís Barreiros dos Reis, Fernando Carvalho Gesteiro, João Guilherme Aguiar Arruda e José James Hartley Barnetto.

De facto, quando falamos do 25 de Abril, é frequente afirmarmos que foi uma revolução sem sangue, a única que se conhece, a substituição de um regime por outro regime sem que para isso tenha sido derramada uma única gota de sangue. Uma revolução com cravos em vez de balas, com tanques onde soldados partilharam uma ideia de futuro com a população, em vez de confrontos.

Todavia, esta revolução “sem derramamento de sangue” foi um rude golpe para as famílias dos quatro jovens, que atrás referi, para quem o 25 de Abril foi o primeiro dia em que tiveram a ilusão de que eram livres, e ao mesmo tempo, o dia que, nas suas vidas, foi mais curto que todos os outros, porque foi o dia em que morreram. São, por isso, numa perspectiva romântica (a mais interessante de todas as perspectivas), heróis improváveis do 25 de Abril, heróis esquecidos pelas comemorações e pela nossa memória.

Para dizer algo mais sobre os nossos mártires involuntários, socorro-me do texto de um anexo da Petição nº 11/2018 “Atribuição de topónimo”, que entrou na Assembleia Municipal de Lisboa em Junho de 2018, decorrendo trâmites nos órgãos respectivos da Câmara Municipal de Lisboa.

Ao que se sabe, saíram do lugar onde dormiram com o entusiasmo próprio dos que sentem viver um momento histórico, quem sabe um instante decisivo das suas vidas, do seu futuro. Dirigiram-se para o Chiado, Rua António Maria Cardoso, lugar que simbolizava o medo que alavancou grande parte do poder de Salazar e de um Estado Novo que o professor de Santa Comba moldou à sua própria personalidade. Naqueles meados de 1974, Salazar já partira de entre os vivos. Marcello Caetano substituíra-o na presidência do Conselho e deixara-se enredar pelos ultras do regime, uma lástima que pagaria muito cara.

Mas desvio-me do que verdadeiramente interessa, a história de quatro jovens que, cada um com os seus motivos e circunstâncias, saíram de casa e se dirigiram para a sede da PIDE. Muitas dezenas de pessoas, talvez centenas, tiveram exactamente a mesma ideia que Fernando Luís Barreiros dos Reis, Fernando Carvalho Gesteiro, João Guilherme Aguiar Arruda e José James Hartley Barnetto. À medida que corria a manhã e se multiplicavam as notícias na rádio e na RTP (tomadas de assalto pelas forças revolucionárias), foram chegando homens e mulheres com vontade de fazer justiça ou de ver a justiça ser feita contra os polícias políticos responsáveis pelas maiores barbaridades do século xx português. Os comunistas chamavam-lhes torcionários, cresci com essa palavra na cabeça.

Num instante em que já era conhecida a rendição de Marcello Caetano e a capitulação do regime, momento em que a população gritava palavras de ordem na estreita rua no coração de Lisboa, os agentes da PIDE/DGS, sentindo-se cercados pelo povo, abriram fogo. Dispararam indiscriminadamente. Para matar uns tantos, para assustar os que estivessem no cerco, para fazer o que fosse preciso e prepararem um plano de fuga.

Vários populares caíram. Todos correram para um lado e para o outro da rua. Quem lá esteve fala de gritos, pânico, confusão. Os tiros continuaram durante longos segundos, a maioria foram disparados para o ar, mas muita gente ficou no chão, ferida. Entre esses, quatro viram a liberdade morrer no dia em que nasceu. O mais novo tinha 18 anos e o mais velho 37, uma vida à frente. Se cumprissem a média de vida dos portugueses, ainda hoje estariam despertos, teriam tido uma vida, uma outra vida. Não a tiveram.  

São heróis esquecidos do 25 de Abril, talvez os mais esquecidos, os que poucos recordam, pois, para todos os efeitos, na Revolução não houve vítimas, apenas cravos em espingardas que nunca dispararam. Mártires involuntários do 25 de Abril ficaram. Ninguém deles é recordado, ninguém reteve os seus nomes – mas nomes que, sem paradoxo, ficam para a história. Como gosta de dizer um grande amigo, ficam como o exemplo do arbítrio desesperado do velho regime e também da serenidade da democracia que se iniciava.

Um país de brandos costumes. Mas também um país de coragem (e ingenuidade) que fez jovens avançarem para a sede da PIDE ou para o Quartel do Carmo, sem garantias de que não pudessem ser um alvo fácil. Não lhes passava pela cabeça a ideia reaccionária de que algum mal lhes pudesse acontecer, não naquele dia que parecia protegido contra a morte – pelo menos assim ficou conhecido entre as gerações que já nasceram em liberdade.

Não se sabe muito sobre cada um dos jovens que tombaram. Uma ideia que dará uma boa reportagem ou um bom documentário. Sabe-se que entre eles o segundo mais jovem, João Arruda, tinha 20 anos e era admirador de Martin Luther King. Um jovem açoriano, estudante em Lisboa, filho de um varredor de ruas em Ponta Delgada que a família gosta de recordar como um miúdo que acreditava convictamente na democracia. Como poderia ter ele obedecido aos apelos sucessivos do MFA na rádio, como poderia ter ficado no seu quarto alugado quando todos os que admirava estavam na rua a viver o primeiro dia de construção de um novo livro?

O mesmo se poderia escrever de Fernando Gesteiro, o mais novo de todos, transmontano empregado num escritório, rapaz que, acabada a festa da maioridade, gozava da protecção do forte núcleo de Montalegre, terra de gente que se jura íntegra e corajosa. Ou de Fernando dos Reis, soldado da primeira companhia de Penamacor, morto num combate improvável em plena Metrópole. Ou do mais velho, José Barnetto, natural de Vendas Novas. Ou os muitos feridos, a larga maioria jovens estudantes, que viram os seus corpos feridos e marcados para sempre – entre eles Aarão de Almeida, Agostinho Soares, António Lima, António Cruz, António Esteves, António Ribeiro, Armando Afonso, Armindo Oliveira, Camélia Pimenta, Fernando Martins, Francisco Ramos, Joaquim Cristo, Jorge Costa, José Pereira, José Fernandes, José Gutierrez, Luís de Oliveira, Manuel Alves, Maria Neto, Maria Martins, Maria Flores, Rogério Osório e Rui Morais. Por sorte, apenas feridos. Para esses, ao dia em que caíram na António Maria Cardoso, seguiram-se outros; viveram a liberdade e provaram até à última gota o que faz a vida ser vida, incluindo as tragédias a que estamos condenados.  

Respondendo a uma questão que lhe foi colocada, disse Natália Correia: o que é que ficou do 25 de Abril? Ficou uma grande disponibilidade para as pessoas se organizarem. Digo eu, tenho receio que essa disponibilidade tenha vindo a minguar.

Nem nos organizamos o suficiente, nem participamos activamente na vida do país. Não participamos, mas depois acusamos os que participam de serem oportunistas e aproveitadores.

São “eles”, ouve-se com frequência, que são todos iguais, são os políticos.

Não participamos porque os políticos são todos maus! Mas, se não participamos como é que podemos substituir os maus pelos bons?

Cidadania! Uma grande dose de cidadania é o que nós portugueses devíamos receber neste 25 de Abril.